Entrevista com o Professor Roberto Aureliano Salmeron
O Professor Roberto
Salmeron foi, entre outras coisas, o primeiro Diretor do Instituto de
Física da Universidade de Brasília, pesquisador em
raios cósmicos do CERN (Suiça), professor da Ecole
Polytechnique, além de consultor para o Prêmio Nobel de
Física. Para além dos atributos do cientista, os
entrevistadores de Passages de Paris querem consignar a profunda
impressão que nos deixou por sua estatura humana.
Passages
de Paris – Qual a sua relação anterior com a
APEB ? Fale-nos um pouco do seu contato com a associação.
Professor
Roberto Salmeron – No passado, estive em relação
bastante próxima com a APEB. Havia reuniões
muito concorridas na Maison du Brésil, na Cité.
Convidavam-me freqüentemente para dar palestras ou trocar
idéias. Havia nessa época um presidente, que era médico
e muito ativo ; trabalhava no Collège de France e as
reuniões da APEB às vezes ocorriam lá. Mantive
esse contato por muito anos. Depois que mudou a direção,
meu contato foi diminuindo e nos últimos anos não
havia mais nenhum. No começo, porém, colaborei
bastante, pois considero-a uma instituição muito
importante para manter os estudantes aqui reunidos e trocar idéias.
Passages de Paris
– Esse ano faleceu o professor César Lattes, com quem o
senhor já trabalhou. Como foi sua relação com
ele ?
Professor Roberto
Salmeron - O Lattes era muito amigo meu. Teve um papel
extremamente importante na divulgação da física
do Brasil. Quando era bem jovem, participou de um trabalho de grande
importância na Inglaterra, na Universidade de Brístol,
quando foi feita a descoberta da partícula meson pi. O
Lattes participou dessa descoberta, que lhe trouxe grande prestígio.
Muito jovem ainda, voltou ao Brasil e fundou o Centro Brasileiro de
Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, que ainda hoje é
um dos bons laboratórios de física brasileiros. No
Brasil, não chegou a fazer nenhum trabalho da mesma
importância, mas somente sua presença já era
estimulante. O fato de ter voltado ao Brasil e fundado esse
laboratório, com muito idealismo, estimulou os jovens a serem
físicos. De maneira que o papel do Lattes foi extremamente
importante para a evolução da física no Brasil.
Conhecemo-nos quando éramos muito jovens. Eu era aluno da
Politécnica, em São Paulo e ele de Física, na
antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Fazíamos
serviço militar no CPOR, foi lá que nos conhecemos. Ele
fazia a arma de artilharia e eu, engenharia militar. O
irmão dele, Davi, era meu colega na
Escola Politécnica, onde formei-me engenheiro
mecânico-eletricista. Quando Lattes fundou o Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas, eu trabalhava na USP ;
trabalhava em dois lugares : na Escola Politécnica, era
assistente de Física junto ao excelente professor Luís
Cintra do Prado e estava começando a fazer pesquisa na
Faculdade de Filosofia com o professor Gleb Wataghin, que foi o pai
da física brasileira. O professor Wataghin voltou para a
Itália, porque sua esposa queria viver lá os últimos
anos. Trabalhou 16 anos na USP. O setor de raios cósmicos, que
comecei a desenvolver com o professor Wataghin, ficou então
sem orientação na USP. Quando o Lattes fundou o CBPF,
convidou-me para ir ao Rio de Janeiro e aceitei ; fui um dos
fundadores do Centro no Rio de Janeiro, porque lá podia
trabalhar com raios cósmicos. Mas, voltando
ao Lattes, a física brasileira realmente deve-lhe muito.
Passages de Paris
– Existe até uma polêmica, se ele deveria ter
ganho o prêmio Nobel por esse trabalho sobre os raios cósmicos…
Professor Roberto
Salmeron – Vou falar com toda honestidade científica,
há uma certa confusão… como vocês acabaram
de ver, faço toda justiça ao trabalho e talento do
Lattes e a suas iniciativas. Porém em física, como em
todas as ciências experimentais, química, biologia, há
certas técnicas fundamentais que abrem caminhos inteiramentes
novos. Naquela época, na Inglaterra, na Universidade de
Brístol, havia um grande físico chamado Cecil
Powell, que estava desenvolvendo, para o estudo de física
nuclear, uma técnica de emulsões. No filme para
fotografia, a parte sensível para emulsão nuclear é
muito delgada, de frações de milímetros. A idéia
era fazer essa placa mais espessa, de vários milímetros
e mesmo centímetros, de maneira que uma partícula, uma
carga elétrica, ao atravessá-la, deixasse um rastro ;
a partícula arranca os elétrons dos átomos e,
quando a placa é revelada, como qualquer chapa fotográfica,
vê-se o traço de sua trajetória. O Powell estava
trabalhando nisso há muitos anos, desde antes da segunda
guerra mundial, em 1939. Durante esta, interrompeu o trabalho, porque
muitos cientistas participavam do esforço de guerra. Estava
desenvolvendo essa técnica junto com uma fábrica de
filmes de uma cidadezinha perto de Brístol. Havia
lá um técnico genial chamado Walker, que trabalhava com
o Powell. Havia também um físico ialiano, Giuseppe
Occhialini - vocês já devem ter ouvido falar, porque o
trabalho do meson pi foi realizado pelo três: Lattes,
Occhialini e Powell… Occhialini foi professor do Lattes em São
Paulo. Quando terminou a guerra, Occhialini escreveu a seu
grande amigo, o físico inglês Blackett, que orientou
minha tese na Universidade de Manchester, com quem desejava voltar a
trabalhar. Blackett era um grande cientista e um grande homem ;
respondeu que, se Occhialini quisesse trabalhar na Inglaterra, seria
melhor fazê-lo com Powell, que estava conduzindo o mais
importante trabalho de física nesse país, precisamente
o desenvolvimento da técnica de emulsões
nucleares. Occhialini seguiu o conselho de Blackett e, mais tarde,
chamou o Lattes para trabalhar com ele em Brístol. A equipe
era enorme, 10 a 15 jovens. Trabalhando com a técnica de
emulsões nucleares, foi descoberta por acaso essa partícula.
Então vejam, por que estou contando essa historia ? A
coisa mais importante não é a descoberta do meson pi
e sim o desenvolvimento da técnica de emulsões
nucleares. Com essa técnica, foram descobertos o pi e dezenas
de outras partículas. O Powell ganhou o prêmio Nobel,
não por causa da descoberta do pi, mas pelo desenvolvimento da
técnica de emulsões nucleares. Várias vezes, o
comitê do prêmio Nobel recompensou cientistas que
desenvolveram novas tecnologias. Então, é um erro
pensar que o prêmio Nobel foi dado pela descoberta do pi, ele o
foi pela descoberta e desenvolvimento da técnica de emulsões
nucleares.
Passages de Paris
– O senhor também já fez parte do comitê do
prêmio Nobel ?
Professor Roberto
Salmeron – Não. Esse comitê é formado
quase que exclusivamente por cientistas da Universidade de Estocolmo.
Existem comitês Nobel para física,
química, medicina, biologia, paz, literatura. O comitê
Nobel para a Paz é situado em Oslo, na Noruega. Nobel já
deixou isso definido em seu testamento. Existem então vários
comitês, que pedem sugestões a cientistas ou pessoas da
área em todo mundo. Durante 5 anos, fui consultado para fazer
sugestões sobre quem deviam considerar para a atribuição
do prêmio Nobel. Trabalhei esse tempo como conselheiro e uma
vez o meu indicado recebeu o prêmio Nobel. Mas não vou
dizer quem é…
Passages de Paris
– Vamos falar um pouco de sua história e participação
na criação da UnB.
Professor Roberto
Salmeron – Fui fazer doutorado na Universidade de
Manchester. Meu orientador foi exatamente o Patrick Blackett, que
também ganhou o prêmio Nobel de física. Era o
maior especialista em raios cósmicos, naquela época.
Seu laboratório em Manchester era o mais importante do mundo.
Quando trabalhava com o professor Wataghin, conheci os trabalhos
produzidos em Manchester e concluí que era lá que
desejava trabalhar. Eu mesmo fiz a escolha, nunca ninguém me
orientou sobre onde deveria ir. Escrevi uma carta para o professor
Blackett, dizendo « sou um jovem físico brasileiro
e gostaria de trabalhar no seu laboratório ». Umas
3 semanas depois, recebi uma resposta. Quando terminei a minha tese,
tinha sido criado em Genebra um laboratório chamado CERN
(Centre Européen de Recherche Nucléaire). O professor
Blackett era membro do conselho do CERN e sugeriu à direção
que me contratassem. Ia voltar para o Brasil, já estava
fazendo as malas com a minha mulher - tínhamos um filho -,
quando houve esse convite. Como estudante estrangeiro, nem sabia o
que era o CERN. Blackett precisou explicar-me o que era, quais as
perspectivas, porque eu trabalhava com raios cósmicos num
grupo inglês que fazia experiências na Suiça, nos
Alpes suiços. E o professor Blackett disse : « quando
você for à Suiça na próxima vez, vou
telefonar ao diretor do CERN e este vai recebê-lo ».
Imagine, o CERN estava começando e o diretor podia receber um
estudante ! Era uma situação excepcional. Então,
conheci o laboratório desde o início e como foi
organizado. Fiquei lá com contrato permanente. Poderia
ter me aposentado no CERN. Mas depois de oito anos
e meio em Genebra, decidi ir para a Universidade de Brasília,
com a qual já então colaborava enquanto conselheiro em
física. Pouca gente sabe que o pai da UnB foi o Anísio
Teixeira, o maior educador que o Brasil já teve. Este
estruturou a universidade, baseado em suas experiências
anteriores. Sugeriu que ela tivesse conselheiros em todos os
ramos e que estes definissem como a universidade deveria ser, ao
invés de querer organizar tudo de antemão e depois
convidar as pessoas para trabalharem. Depois de viagens ao Rio e
muito intercâmbio, além de ter discutido bastante com
minha mulher, decidimos ir para Brasília. Apesar de ter
passado mais de metade da minha vida na Europa, não queríamos
passar o resto dela fora do Brasil. Quando trabalhei no CERN, sabia
que não iria ficar lá para sempre. Queria voltar ao
Brasil. Quando apareceu essa oportunidade, fui a Brasília como
um dos fundadores da universidade. Fui o primeiro físico e
primeiro diretor do Instituto de Física.
Passages de Paris
– Em que ano foi isso ?
Professor
Roberto Salmeron – Chegamos em 1963 e comecei a trabalhar
na universidade no dia 2 de Janeiro de 1964. O reitor Anísio
Teixeira era uma grande personalidade, realmente extraordinária.
Tive a chance de discutir com ele todos os dias. A universidade
estava começando e ficávamos horas conversando. Uma
experiência muito bonita. Depois de um mês, propôs
ao conselho diretor da Universidade de Brasília que me
nomeasse coordenador de todos os institutos de ciências, um
passo para a fundação da escola de engenharia. Ao mesmo
tempo que dirigia o Instituto de Física, era coordenador dos
institutos de física, química, matemática,
biologia, geociências. Foi uma atividade muito bonita, tive
contato com pessoas extraordinárias.
Passages de Paris
– Em 1964, houve o golpe militar. O que mudou na Universidade ?
Professor Roberto
Salmeron – O golpe militar deu-se no dia 31 de março
de 64. Estava trabalhando há três meses. No dia do golpe
mesmo, encontrava-me em Genebra, para redigir os artigos sobre as
últimas experiências nas quais tinha participado. Lá
tive a notícia do golpe. Minha mulher e nosso filho estavam no
Brasil, em São Paulo, com nossa família. Apesar
disso, voltei para a Universidade. Pouca gente sabe que, na época
do golpe, nós, os professores, pensamos em sair da
Universidade de Brasília. Achávamos
que com o governo militar ia ser muito difícil. Depois,
refletindo bem, pensamos que a educação era importante…
e que o governo militar ia terminar em dias. Decidimos continuar
trabalhando. Com o golpe militar, o Anísio Teixeira foi
deposto da reitoria e substituído, pelos militares, por um
professor da Universidade de São Paulo, da Faculdade de
Medicina Veterinária, chamado Zeferino Vaz. Não
consultaram ninguém na Universidade, foi posto lá como
interventor. Zeferino Vaz era um homem inteligente; dizia mesmo que
participara “desassombradamente” do golpe de estado,
junto com seu amigo Ademar de Barros, governador de São Paulo.
Recomeçamos a trabalhar, como se a situação
fosse normal. Havia um entusiasmo na UNB, naquele período, que
nunca vi em lugar nenhum. Trabalhei em vários paises e
instituições, mas nunca vi um entusiasmo como aquele,
da parte de docentes, funcionários, estudantes… Estes
estudavam todo tempo, em situações muito precárias:
a universidade estava no início e a verba era muito reduzida.
Até dava pena das condições dos
estudantes, mas nunca se cansavam. O Zeferino Vaz, que assumira como
interventor, dizia isso quando queria comportar-se como professor
universitário. E, na verdade, comportava-se como tal ;
mas, quando havia alguma dificuldade, seguia as ordens dos militares.
As dificuldades foram surgindo e os docentes e estudantes foram
perdendo a confiança nele. Nós, docentes, nunca
pensamos que ele teria um comportamento 100% normal. Sua situação
tornou-se difícil e foi então substituído,
pelos militares, por Laerte Ramos de Carvalho, do Instituto de
Educação da USP. O Laerte de Carvalho foi catastrófico.
Era um homem incapaz de dialogar, trocar idéias e queria usar
de autoridade. Para dar uma idéia de sua incapacidade, assumiu
a reitoria e não conversou antes com nenhum de nós. Não
foi informar-se sobre a universidade, nem com o pessoal de ciências
humanas, artes, letras, nada. Um fato característico :
como não nos procurou, conversei com um colega e disse :
« se o reitor não nos procura, vamos procurá-lo ».
Fui então dizer ao reitor que os 14 diretores de departamentos
queríamos conversar com ele. Não nos convidou para ir à
Reitoria, que tinha uma sala de reuniões especial. A reunião
foi feita no meu escritório, que era pequeno, dava para 15
pessoas muito mal acomodadas. Cada coordenador explicou durante 10
minutos o que se passava no seu departamento ou instituto. Todos
falaram e o reitor não fez nenhuma pergunta. Quando a última
pessoa terminou de falar, ficamos esperando alguma reação
sua. Ele disse : « agradeço aos senhores pela
exposição, mas quero dizer-lhes que vim aqui para
servir ao governo ». Esse foi o primeiro contato. Esse era
o ambiente durante o regime militar. Esse reitor era tão
incapaz, que as divergências foram aumentado com os professores
e estudantes. Num certo dia, os estudantes entraram em greve.
Tentamos dissuadi-los. Houve uma reação do reitor
contra os estudantes e ameaça de demissão dos
professores. Em sinal de protesto, os professores fizeram uma greve
de 4 horas, no sábado de manha. Todos fomos trabalhar, não
demos aula, mas estávamos presentes. No domingo, o reitor
mandou uma carta ao general comandante do Batalhão de
Segurança Pública de Brasília pedindo para
invadir a Universidade. No domingo à noite, as tropas de
segurança de Brasília invadiram a universidade. Na
segunda de manhã, não podíamos entrar, os
soldados barravam nossa entrada na universidade. Podem imaginar o
clima !? Nós, os coordenadores, não podíamos
nos reunir na universidade para trocar idéias, com o campus
tomado por tropas. Reuníamo-nos na casa de um professor ou de
outro, como no meu apartamento em Brasília. O reitor não
nos procurava, não tinha nenhum contato conosco, mas, como
acontece muito, alguns jornalistas, nossos amigos, telefonavam para
dizer « olha, o reitor está em reunião
secreta com o SNI ». Um dia, soubemos assim que o reitor
fizera uma lista de quinze professores a serem demitidos. Aí
aconteceu uma coisa muito interessante. Estávamos unidos e
cada um de nós já tinha pensado que, se alguém
fosse demitido, iríamos pedir a nossa própria demissão.
Porque não teríamos mais uma coerência moral para
continuar ensinando numa universidade. Como é que você
pode admitir que seu colega, no departamento da porta ao lado, vá
preso, seu estudante vá preso e você sem fazer nada,
trabalhando como se nada tivesse acontecido ? Cada um dos
coordenadores tinha pensado nisso, mas sem dizer aos outros. Cada um
de nós escreveu uma carta de demissão. Decidimos
enviá-la somente se alguém fosse demitido. A notícia
foi se espalhando na cidade como pólvora, todo mundo soube que
iríamos pedir demissão se alguém fosse demitido.
Não pedimos a ninguém para se demitir, mas 223
professores o fizeram. Houve inclusive casos de professores com
famílias, numa situação de tanta necessidade que
fui pedir que não se demitissem. Vários não o
fizeram porque pedimos. Realmente, 15 professores foram demitidos. Um
jornalista ligou para dizer que o reitor tinha enviado aos jornais o
nome dos 15. Enviamos então aos jornais nossas cartas de
demissão. Uma cópia aos jornais e outra ao reitor. No
dia seguinte, os quotidianos publicaram a nota do reitor demitindo os
15 professores e as nossas cartas de demissão. Foi
impressionante. Conto isso em detalhe num livro que se chama « A
universidade interrompida : Brasília 1964-1965 »,
publicado pela editora da UnB e atualmente esgotado, mas que terá
talvez uma segunda edição (VER DISCURSO NA UnB
PUBLICADO NESTE NÚMERO DE PASSAGES DE PARIS). Um
detalhe : o reitor Carvalho assumiu a universidade em setembro
de 65 e pediu às tropas para invadirem a universidade no dia
18 de outubro, seis semanas depois. É o unico caso que conheço
de um reitor que pede tropas para invadir a sua própria
universidade.
Passages de Paris
– Como foi sua saída do Brasil ?
Professor Roberto
Salmeron - Como já disse, minha mulher e eu não
queríamos morar fora do Brasil. Gostamos imensamente do Brasil
e temos amigos lá por toda parte. Depois da minha demissão
da Universidade de Brasília, fiquei sem emprego. As pessoas
das outras universidades tinham medo de dar-me um emprego. Por
exemplo, tinha-me inscrito para um concurso a ser aberto no Rio de
Janeiro, na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade do
Brasil, atual UFRJ, por iniciativa de um amigo, que pensava trazer-me
ao Rio se eu vencesse o concurso. A organização
recusou : « enquanto não soubermos exatamente
qual foi o papel do Salmeron no que aconteceu em Brasília, não
podemos correr o risco ». E o concurso não foi
aberto. Aqui na Europa, os jornais publicavam o que estava
acontecendo na UnB. Meus amigos do CERN estavam a par, inclusive um
engenheiro eletrônico que trabalhava comigo em Brasília,
ajudando a montar um laboratório. Quando estourou essa crise,
voltou a Genebra e contou tudo ao diretor, um grande físico
chamado Victor Weisskopf. Este enviou-me um contrato para voltar ao
CERN. Fiquei com esse contrato dois meses e não queria
voltar. Um dia, Weisskopf telefonou para minha casa em Brasília :
« queria saber se você mesmo responderia ao
telefone. Não tome nenhuma atitude sem
entrar em contato comigo antes ». Depois de uns 15
dias, recebo através da embaixada da França, pela mala
diplomática, uma carta com um convite para voltar ao CERN e o
contrato já assinado. Ainda fiquei com isso na mão
durante 5 meses. Finalmente decidi voltar, porque se ficasse no
Brasil iria mudar de profissão e trabalhar como engenheiro.
Essa volta para Genebra psicologicamente foi terrível para
mim, como vocês podem imaginar. Aos poucos, fui retomando a
vida de pesquisa e um ano e meio depois, em 67, recebi um convite
para vir à Ecole Polytechnique, aqui em Paris. Junto
com a minha mulher, pensamos muito na educação dos
filhos. Para eles, serem educados em Paris seria uma abertura enorme.
Um lugar com tanto movimento intelectual, científico,
artístico, político, sociológico... Isso foi
decisivo para virmos a Paris.
Passages de Paris
– Aliás, o nome de nossa revista é Passages de
Paris, em homenagem ao Walter Benjamim...
Professor
Roberto Salmeron – Bonito nome.
Passages de Paris
– … um ponto importante para nós é
justamente que possa falar-nos dessa experiência de estar em
Paris.
Professor Roberto
Salmeron – Não lamentamos ter educado os filhos
aqui. Agora, é engraçado, são muito ligados ao
Brasil e o mais velho, quando estava se formando aqui na
universidade, queria voltar ao Brasil. Mas era a época em que
a ditadura ainda estava muito forte… em 79, 80. Todos os anos,
tirava férias no Brasil, com a família e amigos que
tinham ficado lá. Percebemos que seria muito difícil
para eles se readaptarem em plena ditadura. Então os filhos
permaneceram todos aqui.
Passages de Paris
– Houve uma profecia sua que se realizou : que a ditadura
duraria 20 anos.
Professor Roberto
Salmeron – Exatamente. Tive muito contato com os militares,
procuravam-me às vezes. De minha parte, dizia aos colegas :
« vamos falar com os militares sobre a universidade ».
Inclusive, tivemos uma entrevista com o Golbery do
Couto e Silva, que era o principal intelectual do golpe de estado.
Percebi que estavam tão fortes, tão seguros, que não
via quem poderia mudá-los, o que me levou a afirmar que
ficariam no poder por 20 anos. Ficaram 21 anos. Nosso filho
mais velho, quando saímos de Brasília, era adolescente.
Os filhos choravam de tristeza quando se despediam dos amigos. O mais
velho queria ficar, com tios ou amigos e fazer seus estudos lá.
Mas a Sônia e eu nos dissemos : « os militares
vão ficar no poder por 20 anos. Temos que educar nossos filhos
na Europa e só depois voltar ao Brasil». Uma época,
havia muitos exilados brasileiros aqui, durante a ditadura. Muitos
amigos nossos. Alguns fizeram um erro terrível com os filhos.
Ficavam sempre na ilusão de que a ditadura ia acabar em 6
meses e que voltariam logo. Isso pertubou as crianças, que não
levavam os estudos a sério. Temos grandes amigos
universitários com filhos que não estudaram,
perturbados pela idéia de que voltariam ao Brasil seis meses
depois. Para nós era bastante claro : « vamos
ficar aqui até que vocês terminem a universidade ».
(Sônia, a esposa –
que é psicanalista - interrompe : Era você quem
dizia que ia durar 20 anos. Porque eu mantinha os livros em caixotes,
pensando que íamos voltar para o Brasil em 2 meses.)
Passages de Paris –
No Brasil, houve alguma sensação de ameaça à
sua vida ?
Professor
Roberto Salmeron - Não houve. Nunca fui preso, nem
ameaçado. No meio de toda aquela crise das universidades, fui
procurado por militares de auto escalão, que me pediram para
não sair da universidade e afirmavam que poderia continuar o
meu trabalho como quizesse. Disse-lhes que aceitaria, com uma
condição : « que todos os professores
demitidos fossem readmitidos ». Como isso não foi
possível, não fiquei.
Passages de Paris
– Como o nosso dossiê é sobre a ciência
ontem, hoje e amanhã, gostaríamos que falasse um pouco
sobre o que está se passando hoje no Brasil.
Professor
Roberto Salmeron – Falo sobre a ciência hoje no
Brasil com muito prazer, porque todas as ciências tem tido ali
um desenvolvimento extraordinário. Pouca gente tem consciência
disso, mas há uma qualidade no brasileiro, que percebi quando
era muito jovem ainda. Dizia aos amigos, que pensavam que eu
era muito otimista : « o brasileiro tem muita
iniciativa ». Muita iniciativa. Como
povo. Como coletividade. Apesar dos tipos de governos catastróficos
que temos tido, o país progride graças à
iniciativa individual das pessoas, que fazem tudo, no ensino, nas
indústrias, no comércio. O país é mal
estruturado, mas o brasileiro tem muita iniciativa. Essa
capacidade de iniciativa do brasileiro fez avançar a ciência
do Brasil, na minha geração, de um modo espetacular.
Trabalhei em vários países e lugares, tenho tido
contato científico com a maioria dos países do mundo.
Não conheço nenhum em que o desenvolvimento científico
tenha sido tão grande quanto no Brasil da minha geração.
A ciência no Brasil que tem mais tradição
é a medicina. Muito desenvolvida, já começou no
fim do século XIX. Da medicina, passou-se à
biologia. Em física, posso contar o que aconteceu na minha
geração. Quando comecei a fazer pesquisa, havia na USP
10 a 15 pesquisadores de nível internacional, todos formados
pelo professor Wataghin, metade em física teórica e
metade em física experimental. Tornaram-se depois líderes
na física brasileira. No Rio de Janeiro, havia 3 ou 4. No
Brasil inteiro havia, no máximo, 20 pesquisadores em física.
Hoje há 7 mil. Numa geração.
É um progresso extraordinário. Nenhum país do
mundo teve o número multiplicado por esse fator numa geração
apenas, com elementos de tão alto nível em todas as
ciências. De maneira que o progresso científico no
Brasil tem sido espetacular e continua sendo. Há uma grande
diferença no nível de ensino entre as universidades do
país, mas isso não impede que em muitas haja grupos de
altíssimo nível formando mais gerações.
Passages
de Paris – Na área de pesquisa nuclear, o Brasil
também apresenta um avanço muito importante, inclusive
com a fabricação das centrífugas para
enriquecimento de urânio. O senhor conhece esse trabalho ?
Professor
Roberto Salmeron – Energia nuclear não é a
minha especialidade. Acompanho como físico; aí também
o Brasil teve um progresso muito grande. Há uns 30 anos
atrás, quando o Brasil comprou os reatores nucleares da
Alemanha para Angra, fui contra aquela compra. Fiz conferências
a esse respeito, achava que o Brasil deveria começar com um
reator pequeno, experimental, para aprender e em seguida fazer os
nossos próprios reatores. Já tinhamos pessoal
competente para isso há 30 anos atrás. Cheguei a fazer
palestras sobre esse assunto na câmara dos deputados. Por
acaso, alguns deputados passaram por aqui e conversaram comigo.
Quando contei essa idéia, chamaram-me para falar na câmara
e no senado. A compra dos reatores foi um erro, mas houve uma geração
que aprendeu e agora há um grupo que vai desenvolver os
reatores, impulsionado pela Marinha. Acho que tem toda a razão.
Queria que o Brasil seguisse o que a Índia fez. A Índia
naquela mesma época, há 30 anos atrás, construiu
seus próprios reatores experimentais e depois passou para os
reatores que produzem energia.
Passages de Paris
– Dizia-se que os reatores alemães já eram
obsoletos quando foram comprados…
Professor Roberto
Salmeron – Não. Era o modelo « standard »
naquela época. As pessoas tem a mania de pensar que a energia
nuclear é uma coisa decidida, mas ela está em constante
evolução. Não tendo as suas próprias
usinas, o Brasil não acompanha essa evolução.
Por exemplo, na questão de segurança, o que se conhece
hoje, principalmente aqui na França, não tem nada a ver
com a situação de 30 anos atrás.
Passages de Paris
– Então a sua posição não é
que a energia nuclear seja algo perigoso ou indesejável. Ao
contrário, o senhor defende a idéia de que ela seja
desenvolvida, mas pelos próprios brasileiros.
Professor Roberto
Salmeron – Veja, o país mais avançado do
mundo em energia nuclear é a França, porque a energia é
do governo, é estatal. A França vai inaugurar a quarta
geração de reatores. O sistema de segurança aqui
é muito bem pensado. A segurança do
reator não é feita pelas pessoas que o constroem. Os
que fazem o projeto do reator e os que planejam a segurança
são pessoas diferentes, então não há
influência. O grande problema é o lixo radioativo, mas
já há pesquisas sendo feitas no CERN para fazer o
tratamento desse lixo, bombardeando-o com prótons, para
destruir o material radioativo e transformá-lo em outros,
muito menos radioativos. Isso está em
andamento, não se sabe qual vai ser a conclusão, mas há
muito trabalho nesse sentido. Além disso, há toda a
possibilidade de se fazer um reator com tório, em vez de
urânio, que não produz lixo radioativo. Agora,
por que não se faz isso ? Porque esses reatores foram
desenvolvidos pelas grandes potências, que tem interesse na
bomba. Empregando o urânio, é obtido o plutônio
utilizado na bomba. No Brasil, há gente
interessada em desenvolver o reator a tório, com grandes
possibilidades para o futuro. O Brasil e a Índia são
os paises que mais possuem tório no mundo. Aqui na França,
mais de 80% da energia elétrica depende da energia nuclear. No
inverno, a proporção chega a mais de 90%.
Passages
de Paris – Aqui não se conta com os recursos
hidrográficos que tem o Brasil ; se houvesse lá
essa possibilidade de usar uma energia nuclear « limpa »,
seria ainda assim necessário ?
Professor
Roberto Salmeron – Há lugares no Brasil onde não
há quedas d’água, como no Nordeste. Chegamos do
Brasil há 3 dias atrás e lá circulava a notícia
de que o governo tinha decidido fazer centrais elétricas com
petróleo. O que é um absurdo. O petróleo
tem um preço exorbitante e é o que mais polui. A atual
Chefe da Casa Civil, que era Ministra das Minas e Energia
é contra a energia nuclear. Um absurdo.
Passages de Paris
– O senhor mencionou o Nordeste ; gostaríamos que
nos falasse sobre a descentralização da pesquisa no
Brasil, a possibilidade de sair um pouco do eixo Rio-SP, Brasília,
Sul. Como o senhor vê essa questão da pesquisa no
Norte-Nordeste ? Está crescendo, tendo incentivos ?
Professor Roberto
Salmeron – Isso é muito importante. Há muitos
campos de pesquisa que podem ser desenvolvidos no Norte e Nordeste,
como a eletrônica, a nanotecnologia, que é uma
tecnologia moderna para o futuro, a ciência dos materiais.
Temos gente muito competente no Brasil, nessas áreas. É
importante introduzir isso futuramente no Norte e Nordeste, fazer uma
planificação para que lá se estabeleçam
grupos estáveis. Por exemplo, em Manaus, há
um interesse em desenvolver pesquisa. Seria muito importante
que fossem convidadas pessoas que conheçam o assunto e recebam
apoio para montar os seus laboratórios lá. De maneira
que os jovens desses lugares, indo fazer doutorado no exterior ou em
São Paulo, Rio, Porto Alegre etc., tenham depois de uns anos
um lugar para se fixarem. O que está acontecendo atualmente é
que os jovens vão fazer doutorado em outro lugar e não
voltam mais. É preciso uma infra-estrutura local que favoreça
a inserção desses jovens. Isso é fundamental e
deveria haver um plano nesse sentido, com financiamento garantido por
anos, isto é, estabilidade de recursos.
Passages de Paris
– Seria importante trabalhar sobre temas ligados à
região. No Nordeste, desenvolve-se uma pesquisa sobre
biocombustível, porque lá se encontram plantações
de mamona, por exemplo.
Professor Roberto
Salmeron – No Amazonas, há pessoas interessadas em
programas ligados à região amazônica, um tema
importante! É preciso um plano de aplicação para
criar uma infraestrutura local.
Passages
de Paris – Outro exemplo é o sítio do
programa espacial brasileiro em Alcântara, que serve para
formar um pólo no local. Trabalham com o pessoal do ITA, de
São Paulo, mas muita coisa é feita por lá mesmo.
Professor Roberto
Salmeron – Isso é muito importante.
Passages de Paris
– Para encerrar essa entrevista, como o senhor vê o
futuro da ciência no Brasil ?
Professor Roberto
Salmeron – Sou otimista, porque, como já disse,
temos muita gente para trabalhar e muita gente competente em política
científica. Por exemplo, na atual diretoria do CNPq, o
presidente Erney Camargo é um pesquisador de grande
experiência internacional, com uma visão muito boa do
futuro. Da mesma maneira, nas várias fundações
de apoio à pesquisa, FAPESP, FAPERJ, há gente que
realmente está planejando o futuro, tentando estimular a
pesquisa nas indústrias, que é o nosso ponto fraco. Por
exemplo, se você considerar a França, os EUA, a grande
maioria dos físicos vão trabalhar em indústrias.
Uma minoria permanece nas universidades, na carreira acadêmica.
No Brasil, dá-se o oposto. Apenas 4 ou 5% dos físicos
vão para a indústria. Isso tem que ser invertido. O
CNPq, a FAPESP e a FAPERJ (cito esses 3 porque os conheço, mas
não quer dizer que sejam os únicos) levam esse problema
muito a sério e desenvolvem programas nesse sentido.
Passages de Paris
– Quando se pensa a questão do desenvolvimento
brasileiro, a parte científica « dura »,
por assim dizer, parece ter a tarefa mais importante. Haveria lugar
para as ciências humanas nesse contexto ?
Professor Roberto
Salmeron – Também em ciências humanas o Brasil
tem um progresso considerável. Tome por exemplo o que se fazia
há 40, 50 anos atrás. Havia como estrutura a USP, na
área de letras, iniciada com os franceses que foram para lá
e, além disso, algumas comunidades isoladas no Rio e no
Nordeste. Agora, há uma estrutura em muitos lugares do país.
É um grande progresso. Nosso ponto fraco ainda é a
educação mais elementar, uma das mais deficientes do
mundo e também os cursos fundamental e médio, com
níveis dos mais baixos. Isso precisa ser
resolvido, porque interfere no nível das universidades. Se
as universidades fizerem todas exames vestibulares rigorosos, não
preencherão as vagas. É um problema muito grave que
temos.
Passages de Paris
– Falando nisso, o senhor concorda com uma política de
cotas ?
Professor Roberto
Salmeron – Creio que todo mundo está de acordo, os
jovens de famílias desfavorecidas precisam ser amparados. Não
há necessidade de discussão sobre isso. Agora, é
necessário decidir como ampará-los. Não penso
que o sistema de cotas seja a melhor solução. Até
considero degradante dizer a um jovem que terá direito a um
processo diferenciado por causa da cor da pele ou da origem da
família. O que tem que ser feito é dar a esses jovens
condições para se desenvolverem, oferecendo cursos
gratuitos de formação para que adquiram a base. Esse é
o caminho a ser seguido. Não é fácil, mas é
muito mais justo e também mais digno. A Escola Politécnica
de São Paulo vem realizando, há muitos anos, cursos
gratuitos para estudantes que queiram preparar-se para o vestibular,
dados por jovens e entusiastas professores da Politécnica.
Penso ser esse o caminho correto. É uma ofensa dizer a um
jovem negro, pardo ou descendente de índio que será
aceito por causa da cor da pele ou da origem. Não tenho dúvida
nenhuma que esses jovens vão guardar isso como um estigma para
o resto da vida. Nunca saberá se obteve o título de
médico, por exemplo, por ser competente ou porque recebeu um
favor. O projeto de lei da reforma universitária já
está no Congresso. Não foi discutido ainda, devido à
situação de anormalidade que estamos tendo por lá.
Mas acho isso perigosíssimo, porque se for estipulado por lei,
quando poderá mudar ? Será preciso uma outra lei,
que sairá daqui a 30 ou 50 anos.
Passages de Paris
– Em outros países, onde já existe esse sistema
de cotas, podem-se ver os resultados ?
Professor
Roberto Salmeron – Pediram-me para escrever algo sobre isso
no jornal da UnB, há vários anos atrás. Na
minha geração, vi três casos de países que
implantaram o sistema de cotas e não funcionou. O primeiro foi
a China. Quando foi feita a Revolução Cultural, deu-se
prioridade nas universidades para soldados, operários e
camponeses. Foi catastrófico. Catastrófico para os
proprios operários, que não conseguiam passar nos
cursos. Foi um fracasso geral, individual e coletivo. Estive na China
logo depois de acabada a Revolução Cultural,
conversando com professores universitários que, nesse
programa, tinham sido deslocados para trabalhar com os camponeses na
universidade por vários anos. Um professor de física
contou-me que estudava inglês clandestinamente. Tinha um amigo
professor de inglês e reuniam-se à noite na casa de um
deles para estudar, porque era proibido. Outro país que
fracassou foi a Índia. Sônia e eu estivemos na Índia,
há uns 15 ou 16 anos, onde fui dar um curso. Um dia, vejo no
jornal, escrito em inglês, que tinha ocorrido uma luta de
estudantes com a polícia. O governo tinha feito uma lei que
dava prioridade aos jovens das castas « inferiores ».
Lá, por exemplo, um jovem de uma casta não pode
casar-se com um jovem de outra. Alguns empregos são
reservados a certas castas. O que aconteceu é que não
havia um número de jovens suficiente para ir à
universidade. Sobravam vagas. O protesto era dos estudantes das
castas « superiores », que não entravam
na universidade mesmo com vagas sobrando, porque estas eram
reservadas às castas « inferiores ». O
sistema teve que ser abandonado. Nos EUA, esse privilégio dado
aos negros funcionou por alguns anos e depois foi abandonado. Os
negros tiveram maior benefício com a lei que financia filmes
com artistas negros, do que com a lei de seleção
positiva. Mas o racismo depende da educação. Vi várias
entrevistas com artistas negros americanos dizendo que trabalham num
filme com artistas brancos, mas quando termina o trabalho, os negros
vão para a sociedade dos negros e os brancos vão para a
sociedade dos brancos. Nao há mistura fora do trabalho. É
uma questão de educação.
Passages de Paris
– O que se pode dizer aos colegas que estão vindo para
cá ?
Professor Roberto
Salmeron - Examinando objetivamente, nas áreas que
conheço, física, matemática, engenharia, se
considerar a média, o nível aqui na França é
bem mais elevado que no Brasil. Os jovens que vem para cá tem
um grande valor, porque trabalham muito, levam muito a sério e
acabam se impondo. Acabam vencendo e chegando no nível dos
franceses. O que tem chamado a atenção dos colegas, na
universidade brasileira, é a necessidade de aumentar o nível
dos cursos básicos. Na verdade, muitos professores não
são sensíveis a isso. Estou aposentado da Ecole
Polytechnique, mas continuo freqüentando o laboratório,
quando não estou trabalhando em casa, escrevendo. Acompanho o
que está acontecendo. Trabalhei lá por 25 anos, conheço
bem essa parte de ensino aqui na França. A Ecole
Polytechnique, há alguns anos atrás, inaugurou uns
acordos com outros países e perguntaram-me se trabalharia para
estabelecer um acordo com o Brasil. Fizemos um então um acordo
com a USP. Esta tem dois campus, o de São Paulo e o de São
Carlos. A cidade de São Carlos é uma exceção
no Brasil : é uma verdadeira cidade universitária.
Possui menos de 200 mil habitantes e duas universidades : o
campus da USP e o da UF de São Carlos. Por esse acordo com a
Polytechnique, as universidades brasileiras enviam jovens para
seguirem um curso de graduação - e não
pós-graduação. A Polytechnique e as escolas de
engenharia na França seguem o sistema de grandes écoles.
Os alunos fazem dois anos de um curso muito intensivo e entram na
Polytechnique no que seria equivalente a um terceiro ano de
universidade no Brasil. Os alunos brasileiros devem terminar pelo
menos dois anos de faculdade. Na USP, 60 ou 70 se apresentam e metade
é selecionada. São examinados depois por uma comissao
de 6 professores da Polytechnique, que selecionam 10 a 15. Quando vem
para cá, sofrem muito com a diferença de nível,
especialmente em matemática, mas com muito trabalho acabam se
recuperando. Duas turmas já se formaram aqui e está
sendo uma boa experiência. Mas noto que há poucos
professores sensíveis a esse programa. Esses jovens abrem seus
horizontes. Vivem num mundo que não conheciam. Para começar,
moram na Polytechnique em alojamentos individuais. Nesse programa
internacional, desenvolvem contatos com jovens do mundo inteiro e não
só da França. Meu objetivo é que tomemos esse
exemplo para elevar o nível dos cursos básicos no
Brasil. Alguns professores estão começando a notar
isso. Por exemplo, na UFRJ, os professores das matérias
básicas já estão se perguntando sobre como
poderiam elevar o nível do curso. Mas de maneira geral, ainda
é dificil sensibilizar os professores de lá.
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