AS TERRAS PROIBIDAS DE LUIZA LOBO
Marcia WANDERLEY*
*
Marcia
Cavendish Wanderley é pernambucana, professora de sociologia da
literatura da UFF, e autora dos livros A voz embargada (São
Paulo: Edusp, 1996), Do jeito delas: vozes femininas da língua
inglesa (Rio de Janeiro: 7Letras / Faperj, 2008) e
Mulheres: prosa de ficção no Brasil no Brasil – 1964/2010
(Rio de Janeiro: Ibis libris / Faperj, 2011). Publicou um livro de
poemas: O terceiro jardim (Rio de Janeiro: Editora da
Palavra, 2006).
Um “Casa
grande & senzala” do Vale do Paraíba do Sul, é o que se pode
dizer deste romance portentoso de Luiza Lobo, escrito em tom
rememorativo, às vezes proustiano, de quem se lembra de
um passado não vivido nem testemunhado, mas a respeito do qual
reuniu documentação confiável e verídica, tornando-se histórica
e antropologicamente sustentável. O que não seria novidade, dada
a quantidade de cientistas políticos e sociais, antropólogos,
historiadores, juristas etc a utilizarem, no passado e no
presente, a literatura como fonte secundária para suas
investigações. Este romance é bastante confiável inclusive
porque sua autora (a qual apresentei com honras no meu livro
Mulheres: prosa de ficção no Brasil 1964/2010, recentemente
lançado) é um dos últimos ramos da família
Teixeira Leite e assim teve acesso a todas as informações que
constituem a argamassa da narrativa, utilizando fontes
primárias, em conversas com os e mais antigos parentes e
aderentes remanescentes da sua e de outras famílias que viveram
a saga das fazendas do café do vale do Paraíba do Sul, na então
província e depois Estado do Rio de Janeiro. Isso para não falar
de documentos secretos por tantos anos guardados em baús e ainda
em poder da família, que a autora pôde manusear. Um resgate que
acompanha quase três séculos de história de família e da
história do ouro negro, que deslocou o eixo da economia
brasileira, inicialmente centrado no núcleo canavieiro do
Nordeste, depois na região central das Minas de ouro e pedras
preciosas e finalmente no Sudeste e Sul cafeeiros, completando o
período agroexportador da economia brasileira. Mas enquanto
durou este último ciclo no Sudeste, o do café, a produção e
comercialização foram tão bem sucedidas que os barões agrários,
responsáveis por esta produção, ficaram suficientemente ricos
para alimentar os luxos e o fausto do Imperador e sua corte, e a
própria cidade do Rio de Janeiro foi transformada e tornou-se
mais bela e fascinante com o capital gerado no Vale do Paraíba
do Sul. Foi por isto mesmo que tantos proprietários rurais se
tornaram barões, pois os títulos eram doados pela monarquia à
guisa de recompensas. No final desse processo a monarquia, já
bastante abalada pelos protestos contra a pútrida escravidão e
pelos ecos dos gritos republicanos, irá ruir diante dos
questionamentos e ditames da República,definitivamente
instalada a partir de 1889. Tudo isso está contado em forma
romanesca por Luiza, que desloca também o foco narrativo do
protagonista básico da história, a elite cafeeira rural, para a voz
dos escravos e negros, representados principalmente por Manuel Congo
– uma verdadeira força moral que determinará o destino de sua
família pelo vaticínio mortal proferido na hora de seu enforcamento
em praça pública, em Vassouras. Esse sortilégio teria determinado a
decadência e as agruras sofridas não só por uma, mas por todas as
famílias daquela região. É uma estória triste e longa de decadência
e mortes que nos convence como verdadeira, porque a prosa de ficção
é eficiente neste papel de “suspension of disbelief”, embora
saibamos que não foi diferente o destino das famílias da elite
canavieira dos engenhos, quando as empresas usineiras tomaram conta
da produção do açúcar e multiplicaram essa produção muitas vezes.
José Lins do Rêgo é um dos escritores que desenha esse quadro com
sensibilidade e graça em Menino de engenho, Usina e
outros livros que contam a estória daquelas famílias. No Sudeste, a
abolição da escravatura e a imigração promovida desde o Império com
vistas a uma industrialização que somente floresceria na República,
serão a sentença de morte da economia cafeeira. Aqueles escravos,
tanto no Nordeste quanto no Sudeste, tiveram muitas vezes tratamento
desumano – e Luiza relata os casos das atrocidades e barbaridades
que alguns proprietários de fazendas, como os Wernecks, por exemplo,
faziam com seus escravos, que às vezes eram até enforcados, como no
caso de Manuel Congo. Entretanto, a partir de uma certa data, na
região Sudeste, esse comportamento bárbaro tornou-se mais suave e os
escravos passaram a auferir mais direitos e benesses de seus
proprietários. É àqueles homens e mulheres, os 147 escravos da
fazenda Cachoeira Grande, pertencente ao barão de Vassouras, seu
ancestral Francisco Jose Teixeira Leite, que Luiza dedica seu livro,
corroborando a intenção acima mencionada de realizar o
descentramento das vozes dos poderosos para abrir espaço a outras,
sempre subjugadas e inaudíveis. O mesmo acontece em relação às
mulheres. Conquanto Luiza advirta no inicio do terceiro capítulo da
primeira parte: “Das mulheres não falo porque não são
importantes”, é delas que mais falará, e não apenas através das
chamadas “baronesas loucas”, e nem tão loucas, mas enlouquecidas
pelo patriarcalismo castrador, mas também através da voz de uma
personagem como Eliza, aparição fulgurante e iluminada como um
relâmpago rápido em noite escura, em toda sua leveza, inteligência,
paixão e revolta femininas vivas contra o status quo de
mulheres emudecidas e apagadas que fizeram o cenário das fazendas do
Vale do Paraíba e das casas grandes – ali, onde “nenhuma delas foi
feliz”. Dessas e de outras vozes submersas e emudecidas no decorrer
da história fala a autora, que não deixou de lado as peripécias da
Maçonaria em suas lutas pela libertação dos escravos e pela
República; das idas e vindas de sua própria família em direção à
ruína inapelável, que, como as outras, tão aprisionadas estavam em
suas próprias redes por sistemas de parentesco que garantiam a
limpeza da raça branca que pouco lhes sobrou em termos materiais.
Contudo, restou o que ficou do talento manifestado em alguns membros
daquelas antigas gerações. Eliza é um destes membros que, conquanto
tenha vivido um curto espaço de tempo no mundo, manifestou possuir a
inteligência, a vivacidade e outras qualidades intelectuais e
sensíveis que surpreendemos agora neste excelente romance com fôlego
para contar a história que envolveu a saga dos Teixeira Leite e
outras famílias. Eles fizeram, apesar da nódoa escravista, a
grandeza e o brilho da Monarquia e de uma época de ouro da província
e hoje Estado do Rio de Janeiro. Parabéns, Luiza.
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